Um colega advogado me indicou um cliente do Mato Grosso, o qual precisava resolver umas pendências burocráticas em Salvador. Impossível, na oportunidade, recusar qualquer cliente , ainda mais quando vindo de fora dos muros das Capitanias Hereditárias da Bahia, afinal eu era apenas uma advogada recém formada - sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vinda do interior.
O serviço, não tinha nenhuma complexidade, no entanto me deixou exausta, quase torrando meus miolos ao me obrigar subir e descer sob um sol escaldante, de ônibus, indo de um cartório a outro, pedindo informação, ali e acolá , durante pelo menos uns 5 dias.
Com a papelada pronta, liguei para o cliente comunicando a finalização dos serviços.
Batemos um papo ao telefone e, ao considerar a quantidade de crimes contra a língua portuguesa cometidos por ele durante a breve conversa, como também a maneira humilde de chamar de senhora a uma menina (que então eu era), deduzi se tratar de uma pessoa muito simples, desprovida de recursos financeiros para arcar com os custos do meu trabalho sem prejudicar seu próprio sustento.
A canceriana sentimentalóide que sou não conseguiu resistir, de modo que, penalizada, dispensei os honorários pelo serviço, deixando o cliente tão eufórico que prometeu me enviar um presente muito, muito especial.
Nem dei bolas à promessa, dando-me por satisfeita com meu gesto altruísta.
Quando contei ao colega advogado o que havia ocorrido, levei dele um esporro sem precedentes, tanto por ser aquele homem, visto por mim como pobrezinho, um milionário, quanto por sua indignação ante minha ingenuidade ao acreditar que o bolso e o dicionário tem compromisso.
O dinheiro nem fala com a gramática, porém fala com o preconceito!!
O jeito foi engolir minha idiotice e seguir adiante na batalha por outros clientes!
Passados mais de dois meses do incidente, recebi um telegrama do Mato Grosso informando que uma encomenda chegaria para mim e que receberia um aviso para ir buscá-la.
Desde então, minha "Bolsa de Apostas" passou a operar em alta, com palpites em jóias, caixinhas de música cheias de dólares, estadia em resort all inclusive e tudo mais que a Expectativa usa para construir nossos castelos de areia , até que, em um sábado à tarde, fui contatada para ir a determinado endereço na região metropolitana, de carro, onde o presente me aguardava. Sem ter carro, pedi ajuda a uma amiga que também não tinha carro, porém tinha que um amigo que tinha e assim, de carona, corri em direção ao grande encontro naquele mesmo dia, para não correr o risco de morrer de ansiedade se adiasse a ocasião.
O local, nada mais nada menos que um imenso frigorífico, daqueles que armazenam carnes para distribuir aos supermercados.
Ao entrar no recinto, o coração começou a dar pulos, a curiosidade a causar urticárias, enquanto a insuportável da pulga que vive atrás da minha orelha fez questão de me cutucar com uma desconfiança sobre o tipo de surpresa que um frigorífico poderia esconder.
Pois bem, então me apresentei a um rapaz, o qual, sem dizer uma palavra, trouxe dentro de um carrinho o brinde, congelado, embalado em plástico branco, com um papel em cima escrito em letras garrafais:
” PARA DRA CLÁUDIA - JAVAL
Sim senhores, um Javali, animal ao qual jamais fui apresentada e cuja existência só tinha conhecimento através dos livros didáticos.
Meu mundo caiu sob os escombros da decepção!!.
Retornamos a Salvador, eu, minha amiga e o amigo dela, espremidos na frente de uma caminhonete Saveiro, transportando um pacote que não cabia em nenhum freezer doméstico, sem noção do que fazer, para onde ir, procurando por um ser de luz que mostrasse uma solução para o imbróglio ou, no melhor dos mundos, ficasse com o presente.
Depois de muita peleja, lá pelas 23 horas do fatídico sábado, a dona de um pequeno restaurante, nascida e criada no Cerrado, aceitou o conterrâneo, de braços abertos.
Agora, quando já ultrapasso os 30 anos de advocacia, sinto-me no dever de fazer Justiça à passagem daquele bichinho exótico pelo meu caminho, capaz de me fazer compreender que:
O respeito, a valorização e dignificação do meu trabalho, começam por mim.
Pagamento e presente são figuras absolutamente diversas.
Pagamento é o cumprimento de uma obrigação, enquanto presente, tão somente, uma oferenda, um mimo que diz mais sobre quem dá do que sobre quem recebe;
A caridade não tem nenhuma nobreza se dirigida a quem dela não precisa. Por trás de uma decepção, podem procurar, haverá sempre a tal da Expectativa, disposta a estragar qualquer presente.
Até porque, todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite, menos um Javali.
Claudia Lacerda
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